Matéria de 03/04/22 (Cultura Estadão) do jornalista, crítico musical e escritor, Julio Maria do jornal Estadão.

Explosão do streaming faz acusações de plágio dispararem

George Harrison definiu bem a devastação que sentiu em 1971, quando seu maior hit pós-Beatles, My Sweet Lord, aquele que não poderia dar errado, entrou na mira da pior acusação que se pode fazer a um compositor ilibado: a de que a canção que ele assina seria, na verdade, fruto de um furto e que sua genialidade não passaria de uma fraude. Ao mesmo tempo em que as rádios tocavam My Sweet Lord, os representantes do grupo The Chiffons, um quinteto feminino do Bronx que acabou sem muito espaço na história, entravam na Justiça para ganhar a parada e provar que My Sweet Lord tratava-se de uma apropriação indevida e quase descarada de He’s So Fine. Depois de ser condenado por “plágio inconsciente”, Harrison falou aos repórteres: “Depois disso, eu não queria mais saber nem de encostar em um violão com medo de estar fazendo plágio de alguém.”

Cinquenta anos depois, as mídias e as músicas mudaram, mas o fantasma do plágio ainda assombra. Os casos de artistas que reclamam por terem partes de suas criações subtraídas ilegalmente crescem no Brasil e em outros mercados gigantes da música pop, como os Estados Unidos. “Calculo que, de dois anos para cá, houve um aumento entre 60% e 70% de clientes que me contratam por suspeitarem de que suas músicas foram plagiadas”, diz a doutora Deborah Sztajnberg, advogada e musicóloga, especialista em direitos autorais e autora do livro O Show Não Pode Parar: Direito do Entretenimento no Brasil. Juca Novaes, outro especialista na área, além de cantor e compositor, acrescenta: “Há muitas notificações, casos que não chegam a virar ações. Acordos são feitos entre as partes e não podemos revelar nomes por causa das cláusulas de confidencialidade.” Dos seus clientes mais recentes, dois eram do meio sertanejo e um da música pop. “Algumas coisas estão acontecendo”, diz a doutora Vanise Santiago, referência entre artistas e representante do grupo Procure Saber, que trabalha pata nomes como Caetano Veloso, Milton Nascimento, Gilberto Gil e Djavan. “Como o acesso às músicas é muito mais fácil, fica mais fácil também se detectar um plágio.”

Há contextos que podem explicar tal crescimento, e um deles tem a ver com números: por dia, são postadas algo em torno de 50 mil a 60 mil músicas novas nas plataformas de streaming no mundo. Só no Brasil, 2 mil novas canções entram no universo digital todos os dias. Uma galáxia de notas que pode atiçar uma linha de pensamento um tanto cartesiana, mas curiosa: será possível ser autêntico em alguns anos? Como criar algo que não se pareça com outro algo ainda que nenhum dos dois algos tenham se esbarrado? O pavor de George Harrison faria mais sentido do que nunca?

“O poder da criação é infinito, mas depende de quem cria”, diz o maestro, professor, compositor e mestre em música pela Universidade Estadual Paulista, Julio Bellodi. Ele mesmo pode ser prova de uma considerável longevidade criativa. Bellodi é autor de nada menos do que 1619 choros e apenas um escorregão. “Um amigo ouviu um dos temas e disse: ‘Isso é Ingênuo, do Pixinguinha’.” Ele tinha razão. O plágio inconsciente ou involuntário, o que não inocenta ninguém em um tribunal, é acionado como uma armadilha sorrateira no ato da composição. De repente, um trecho, um arranjo, uma célula melódica ou parte de um refrão guardados silenciosamente no inconsciente se coloca como um complemento ou mesmo o início de uma frase melódica importante. O chato é que aquela bela solução que amaríamos ter criado foi consagrada por outro artista e, sendo assim, tem dono. Dói, mas até Tom Jobim pode ter caído nessa.

O cronista Antonio Maria, em artigo escrito em 1963 para O Jornal, apontou seis importantes “fontes” mais do que definitivas na obra de Jobim, jogando álcool na fogueira acesa pelo crítico José Ramos Tinhorão, para quem o autor não passava de um simulacro de Cole Porter. Mas Maria matou a cobra e mostrou o pau: Esse teu Olhar tem de fato as mesmas notas iniciais e algo mais de The Moon is Blue; Demais tem mesmo a melodia e, sobretudo, a ideia poética de The End of a Love Affair; Insensatez é escandalosamente colada à melodia do Prelúdio n.º 4, de Fréderic Chopin; Dindi parece uma versão de Night and Day; e Eu Sei Que Vou Te Amar, menos perceptível, traria o mesmo universo de Dancing in the Dark. Jobim jamais foi processado por esses casos e sua credibilidade, possivelmente balançada momentaneamente a quem resolver comparar tais canções com a facilidade que as plataformas permitem hoje, segue intacta.

O plágio inconsciente foi por anos uma preocupação de Roberto de Carvalho, músico, autor e coautor de muitos dos grandes sucessos de sua mulher, Rita Lee. “Eu sempre chequei se o que eu fazia era parecido com algo. E algumas vezes era”, diz, sorrindo. Compor em um país que leva o peso de uma carga musical avassaladora, uma linhagem que vem de João Gilberto e Dorival Caymmi para atravessar Gil, Caetano, Milton, Jorge Ben, Djavan e tantos outros desenhistas de novas linguagens torna a composição dentro da esfera do violão um jogo de lampejos cuidadosos que requer desconfiança atenta da própria originalidade. É preciso se esforçar para não ser uma ideia projetada de autor. “A nossa formação musical é análoga à nossa própria formação de personalidade”, diz Roberto, que se arrepende de ter deixado passar um caso.

Ao levarem para o estúdio a música Lança Perfume, em 1979, Rita e Roberto não tinham ideia do que o tecladista e arranjador Lincoln Olivetti, morto em 2015, reservaria a ela. “A base era completamente diferente do que se tornou.” Os Doobie Brothers haviam lançado What a Fool Believes, no álbum Minute by Minute, e Olivetti não teve dúvidas em traficar o mesmo riff para a canção do casal. “Eu tenho problema com isso. Acho que a música já tinha força, não precisávamos daquele riff. Mas eu tinha 24 anos e acabei deixando.”

Por render milhões em decisões históricas nos tribunais, ter um caso de plágio confirmado legalmente tornou-se uma cobiça – e, muitas vezes, a única glória na vida de um artista. O inglês Ed Sheeran é um dos alvos mais recentes. Sua situação é delicada desde que o artista Sami Switch supostamente mostrou a ele a música Oh Why, em 2015. Dois anos depois, Sheeran lançou Shape Of You, um estrondo em sua carreira, com o trecho da discórdia: um insignificante mas definitivo “oh why” no meio do refrão que se repete e se aproxima muito da música de Switch, que afirma ter um dia entregue a gravação a Sheeran para que ele conhecesse seu trabalho. Sheeran, por sua vez, diz não se lembrar de ninguém ter enviado Oh Why para ele. O julgamento segue na corte de Londres, com sérios riscos à credibilidade do popstar.

Pharrell Williams e Robin Thincke fizeram pior: quiseram ter uma Got To Give It Up para chamar de sua e não disfarçaram. Ao “criarem” Blurred Lines, imaginaram estar assumindo toda a autenticidade do implagiável Marvin Gaye e se deram mal. A família de Marvin estava atenta e o plágio consciente e confesso foi confirmado: por tentarem ter seu momento Marvin Gaye, Pharrell e Robin foram condenados a pagar à família do cantor US$ 5 milhões, além de 50% de toda a arrecadação futura das execuções da música.

A matemática pode ajudar a esclarecer a dúvida relacionada ao possível esgotamento da criação pop ocidental. Uma escala musical diatônica contém, ao todo, 12 notas, contando com os chamados sustenidos (entre um dó e um ré, temos o dó sustenido). Assim, segundo um cálculo já feito pela jornalista e graduada em estatística Simone Harnik, se um compositor quiser ser original usando quatro notas diferentes em uma melodia, ele poderá criar 11.880 melodias diferentes. Se passar a usar 10 notas então, poderá fazer 239 milhões de trechos melódicos diferentes uns dos outros. Um universo que pode não ser infinito, mas é quase.

Para além das contas, no entanto, o mundo pop, que não se esforça tanto em seu original, segue dando sinais de congestionamento autoral. Ao ouvir a britânica Adele cantar Million Years Ago, no ano passado, o autor de sambas notórios Toninho Geraes teve a certeza de que Adele e seu parceiro, o norte-americano Greg Kurstin, haviam surrupiado trechos da harmonia e da melodia de Mulheres, o blockbuster de Geraes que Martinho da Vila gravou em 1995. Há ali alguma semelhança, sobre a qual os juízes ingleses terão de decidir, mas Toninho precisa esperar na fila. Antes dele, o compositor turco Ahmet Kaya já havia reclamado coincidências demais entre a mesma Million Years Ago com a sua canção Acilara Tutunmak, que ele gravou em 1985 enquanto estava exilado na França. Mas olha só a encrenca: se Million Years Ago for um plágio da música turca, Mulheres também não seria?

“Semelhança não é plágio”, diz Daniel Campello, CEO da ORB Music, companhia que lidera a gestão de direitos autorais e serviços de música no País. Ele fala de algo mais profundo do que uma frase melódica eventual ou uma coincidência harmônica: “É o contributo de originalidade”. Seria o núcleo da autenticidade, o cálice sagrado de uma composição, a ideia matadora. Aquela que vai importar, de fato, no sucesso de uma canção. O roubo desse contributo seria, sim, um flagrante de plágio culposo.

E como se proteger de um plágio em um mundo que migra para cada vez mais casos de semelhanças suspeitas? Aquele que cria pode saber se o que ele fez se assemelha com algo já feito? “O artista que não for mal intencionado vai sempre considerar sua criação original”, diz a advogada Deborah Sztajnberg. E aquele que vê sua ideia apropriada indevidamente? “Não temos efetivamente um mecanismo para identificar tais situações. Os casos que vi foram resolvidos por acordo entre as partes ou por decisão judicial”, diz Roberto Mello, CEO da Abramus, a Associação Brasileira de Música e Artes que conta com 40 anos de existência e mais de 100 mil titulares.

E há outra peculiaridade no impagável mundo dos plágios: mesmo quando uma canção é confirmada pela Justiça como fruto de apropriação ilegal, ela não necessariamente precisa sair de circulação. Se fosse assim, não teríamos mais Rod Stewart cantando Da Ya Think I’m Sexy, com trechos de Taj Mahal, de Jorge Ben; Miley Cyrus não poderia mais entoar We Can’t Stop, comprovadamente surrupiada do compositor jamaicano Michael May; Roberto Carlos não seria mais encontrado no YouTube, já que do Spotify ele mandou tirar, cantando a música O Careta, um plágio confirmado de Loucuras de Amor, de Sebastião Braga; e uma banda inteira, se as suposições com tamanhas evidências fossem levadas a sério, talvez nem existisse: o Led Zeppelin.